Como os avanços da ciência colocaram lado a lado a biotecnologia e as tecnologias da informação.
As últimas décadas de avanço científico e tecnológico proporcionaram expandir nosso poder de influência a níveis nunca experimentados. A história da civilização mostrou progressivo aprendizado e desenvolvimento de nossas habilidades em fazer uso dos recursos disponíveis e transformar o mundo que nos cerca, mas pouco podíamos em matéria de controle sobre nós mesmos. O que nos traz a um patamar inédito são as descobertas, sobretudo dos últimos 30 anos, que nos permitiram conhecer com riqueza de detalhes a constituição de nossos corpos e, a partir disso, interferir nela.
Nos anos 1990 teve início um projeto de cooperação global para mapear o sequenciamento genético dos seres humanos. Em 2003 já conhecíamos, com alto nível de precisão, as mais de 3 bilhões de “letras” do nosso “alfabeto genômico”. Ao esforço de geneticistas e outros estudiosos das ciências biológicas somou-se a expertise de cientistas da informação, auxiliares na tarefa de organizar e armazenar essas descobertas que, a rigor, são sequências de dados.
Talvez como nunca antes, a biotecnologia e as tecnologias da informação puderam andar simbioticamente juntas. Daí em diante as “revoluções gêmeas” de ambas as áreas, como caracteriza o autor israelense Yuval Harari em “21 lições para o século 21”, passariam a nos permitir “reestruturar não apenas economias e sociedades mas também nossos corpos e mentes”.
Essa parceria já nos proporciona, por exemplo, lidar com a ameaça que alguns vírus representam. Diagnosticar um portador a partir dos sintomas que apresenta pode ser um processo demorado, dadas as várias manifestações possíveis e a enorme lista de vírus já conhecidos. Some-se a isso o fato de que muitos deles, potencialmente mortais, tais como o HIV e o Ebola, causam sérios danos aos seres humanos mas não produzem nenhum sintoma em seus hospedeiros naturais. Aí entra o sequenciamento de DNA, hoje muito mais acessível, e a capacidade já desenvolvida de processamento e análise de dados.
O recente anúncio da gestação dos primeiros bebês submetidos a edição genética de que se tem notícia é um exemplo de onde pudemos chegar. O cientista chinês He Jiankui divulgou informações preliminares da iniciativa que buscou conferir a um embrião a resistência a uma futura contaminação pelo vírus da AIDS por meio de alteração genética. É verdade que o experimento ainda não foi validado pela comunidade científica internacional, mas indica que estamos muito próximos de, antes mesmo do nascimento, interferir em algumas características dos seres humanos. Há dilemas éticos e muitas incertezas envolvidas, mas sem dúvidas o que vemos é um avanço sem precedentes.
Outras aplicações são menos controversas. Com base nos petabytes (ou milhões de gigabytes) de sequências de DNA disponíveis em acervos públicos, cientistas podem identificar no código genético de um hospedeiro pequenos fragmentos do DNA de um vírus e, assim, constatar sua presença. É como encontrar duas sequências numéricas iguais em duas colunas de uma planilha no Excel.
“Humanos sempre foram muito melhores em inventar ferramentas do que em usá?las sabiamente”, afirma Yuval Harari em seu último livro. As revoluções na biotecnologia e nas tecnologias de informação seguirão, ao que tudo indica, e o potencial transformador delas é enorme. Vão restar os dilemas morais e éticos, bem como a responsabilidade pelas consequências das transformações postas em prática – coisas que continuarão atribuídas aos seres humanos, e não às máquinas ou à tecnologia.